sexta-feira, 20 de março de 2015

Vida a crédito, relações parceladas

 João vai na Ricardo Eletro comprar um fogão novo para sua casa. Divide em 5X. Maria vai passar 10 meses pagando o camarote do reino que dividiu no cartão para brincar o carnaval e sua irmã, Adriana, ainda está pagando o Salvador Fest que dividiu também em 10 vezes. Pedro comprou um tablet e também parcelou sua compra: oito “suaves prestações”.

Crédito é comprar quando não se tem o dinheiro suficiente para pagar o produto no ato da compra. A dívida é postergada. A pessoa consome aquilo que não cabe em seu orçamento. Logo, é um falseamento de sua realidade financeira (e subjetiva também, vocês vão entender a razão mais adiante), mas isso faz parte do jogo dinâmico da economia, ok.

João (o do fogão) convida Pedro (o do tablet) e as irmãs festeiras Adriana e Maria para um jantar em sua casa e estrear o fogão com os amigos em um jantar bacana e animado que não tem nada de jantar gourmet. Pedro muito ocupado e empolgado com o tablet não se animou muito e não compareceu ao evento. Ficou em dívida com João. Adriana e Maria não puderam ir, pois estavam no show de Tayrone Cigano na The Best Beach.

Pedro, Adriana e Maria fazem uso do “crédito” social quem têm com João para adiar o encontro. Vão protelando até que se chegue a ”última prestação” (o limite simbólico de quando não puderem adiar mais) e aí “quitarão” a dívida comparecendo, interagindo, socializando-se em qualquer outro dia de qualquer outra oportunidade quando esta surgirá.

 Postergamos a quitação de um produto porque dentro de alguns meses acreditamos que o dinheiro surgirá para quitar a dívida. Postergarmos a “quitação” de uma ausência nas relações/encontros (dívida afetiva/moral) com as pessoas porque acreditamos que o vínculo (e é ele que permite o crédito) se manterá para sempre e assim vamos parcelando as relações em prestações. Administrando os afetos e as sociabilidades de acordo também com nosso tempo disponível (ou seria de acordo com nossas prioridades?). Todos fazemos isso, não há problema, mas o que deveria ser exceção já virou regra. A dinâmica da vida econômica a crédito nos torna reféns de relações sociais fragmentadas. Sem nunca “quitar no ato da compra”, aprendemos que qualquer falta poderá ser sanada e bem resolvida no futuro. Fato que nos torna habituados a procrastinação.

 Qual foi a ultima vez que você “comprou algo significativo e caro no débito”? Tecla Sap – Quando foi a ultima vez que você se proporcionou estar numa relação sem que essa fosse “parcelada”, sem a cultura do adiamento, de modo que ela pudesse se tornar genuína e inteira?

Pessoas não são produtos. Vínculo não é dinheiro.

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