quarta-feira, 25 de abril de 2012

Carros civilizados, pessoas intransigentes



No momento torna-se banal e repetitivo constatar que o trânsito de Salvador vive um caos permanente, crescente e sem perspectivas de melhora. Mas nem é sobre isso que quero falar. Há carros por todos os lados, carros espalhados por lugares improváveis, carros elegantes e chiques, carros-calhambeque, carros utilitários, carros populares, carrões, carrinhos, uma verdadeira “carrópolis”. Também não é sobre isso que quero falar. Quero falar sobre o que isso pode acarretar pra nós humanos. O que uma sociedade de carros está causando, de forma sutil, em nosso comportamento, como vamos nos acostumando e reproduzindo algumas condutas sem que percebamos e quais as implicações disso para a subjetividade enquanto instância psíquica.


Mudamos um pouco nossos hábitos quando deixamos de ser pedestres e assumimos a direção de um carro. Simplesmente por dominar a máquina e sentir a emoção que a potência e o seu controle pode dar, somos tomados por certo poder, um desejo de autoridade absoluta. Tentarei explicar melhor: o status que o carro tem e a representação que sua imagem-estética possui na cidade (ou o seu significado social e político) cria um tipo de elo, ou até fidelidade, entre carro e condutor que é psicologicamente muito sedutor para o ego de quem dirige. Ou seja, o condutor se sente e se reconhece pelo carro que dirige (não pelo que ele é) a partir da forma como ele imagina que as pessoas enxergam alguém que dirige aquele determinado carro. O carro ganha status, ganha identidade, ganha vida.


E se arte imita a vida a Walt Disney já elaborou, em tom profético, essa temática em um de seus desenhos. Em 1950, o genial “Sr. Walker/Sr. Wheeler (Sr. Andante/Sr. Volante), representado por pateta, demonstra a mudança de personalidade do pedestre para o condutor. http://www.youtube.com/watch?v=x_jVumbjoVU


Quando entramos no carro, estamos dentro dele (dentro = inside, “in”, em inglês). Creio que hoje, mais do que nunca, o estar dentro do carro gera uma “cultura do in”, ou seja, comportamentos e atitudes voltados pra dentro da pessoa. A sua matriz é a individualidade que gera o individualismo. São essas condições que despertam todas as outras atitudes e ações que não deveríamos ter, mas que são derivadas do individualismo: intolerância, intransigência, inflexibilidade, inconveniência, inimizade, indiferença, inveja, indisciplina, introspecção. Incorporamos essas características diariamente no trânsito, sobretudo nos engarrafamentos, quando a disputa por espaço é maior e é quando, teoricamente, teria de haver mais interação, comunicação, “negociação”, educação e gentileza. Os carros até se comunicam, as pessoas não. Civilizados são os carros que são revestidos de acessórios, estão quase sempre limpinhos e recebem o fino trato de seus donos. O carro é uma extensão do corpo do dono. Hoje, os donos dão mais civilidade aos seus carros do que a si próprios.


A equação no momento atual em nossa Salvador é bem simples: quanto mais carros nas ruas, mais engarrafamentos e quanto mais engarrafamentos, mais pessoas intransigentes. Hoje o cidadão dá uma buzinada direcionada a você, com tanta intensidade, mas o que ele queria na verdade era lhe agredir. E agride, simbolicamente, através da buzina (há vários subtipos de buzina, mas vou deixar essa escrita pra outra ocasião). No trânsito, o outro está se tornando seu adversário, ou melhor, seu inimigo, o que é ainda pior! Que a introspecção do individualismo produza infinitamente a cautela, a prudência e o bom senso. Ou será que eu estaria sendo ingenuamente infantil ao desejar isso?