A bula é aquele item que descreve
o que todo medicamento pode provocar no organismo. Você adquire o remédio e
fica ciente de todo um perfil adequado para a medicação (faixa etária,
indicação, contraindicação, reações adversas, etc.). A responsabilidade é toda
do sujeito, tendo em vista que ali está prescrito o percurso bioquímico que o
medicamento pode ter no corpo humano.
É realmente de se lamentar que seres
humanos não já venham com a sua própria bula. Facilitaria bastante. Por
exemplo, “Jorge Antônio, 28 anos”:
- Indicações: pessoas com
temperamento efusivo e histriônico; humor
estável. Workholic’s e os que apreciam restaurantes finos e baladas frenéticas
nos finais de semana, com leve inclinação para a prática da musculação em dias
intermitentes, tendem a ter maior compatibilidade. Tendências de maior
afinidade com pessoas que gostem de exposição exacerbada.
- Contra-indicações: pessoas com
hipersensibilidade, geniosas/orgulhosas, comportamento introvertido ou que
manifeste embotamento afetivo. Pessoas que pratiquem esportes de aventura,
ecoturismo, pilates, RPG e turismo cultural também são contra-indicadas nesse
caso.
-Reações adversas: incidência
entre 5% e 20% - cobranças afetivas e sociais, surgimento da ideologia siamesa “nós
dois somos um só”, ciúme generalizado/arbitrário e falta de demonstração de
afeto em locais públicos com o passar do tempo.
Ok, não somos cápsulas medicamentosas. Embora para
algumas pessoas os relacionamentos tenham esse efeito: curar, amenizar o
sofrimento, espantar a solidão, mera conveniência.
Esse é a típica categoria de “relacionamento-placebo”:
não traz nada de muito efetivo, significante ou agregador, mas só o fato de
estar ali numa relação estabelecida e socialmente oficializada (mero status?
pura fachada?) já traz um pseudo conforto/segurança para a pessoa.
Seres humanos não tem bula. As rotulações
criariam impossibilidades para os encontros, eliminariam candidatos
aparentemente pouco sustentáveis, antecipariam diferenças, divergências,
conflitos e desentendimentos que, logo de cara, afastariam as pessoas. Cada
encontro, que é único, pode suscitar no outro condições psíquicas de
sustentabilidade e habilidades sociais de outra natureza que não aquelas que
estariam descritas burocraticamente na bula.
A voracidade do tempo das coisas demanda um
imediatismo que se tenta se impor também para o tempo das pessoas, tendendo a
criar a lógica pragmática de “pessoas-bula” o mecanismo ideal para a atualidade descartável:
“tenho acesso, leio, vejo se me favorece, o que poderá me causar e opto”. Porém,
não temos bula, mas temos alma. E esta, enigmática e densa, requer um pouco
mais de devoção para ser lida e descoberta, para além de uma simples bula,
quando se está disposto a relacionar-se dignamente com alguém.
A sustentabilidade da relação
está em trocar (na semântica é fácil, apenas uma letrinha) o lugar que se deseja
que o outro ocupe na relação: da medicação para a meditação. O outro não pode ser um “remédio”
que preencha nossos vazios e nos traz uma (falsa) sensação de cura, mas sim
aquele que nos leva (e eleva!) a uma condição favorável de autoconhecimento.
Então, segundo passo para um
relacionamento sustentável: conheça e construa (paciente e cuidadosamente) a
“bula” do outro.